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Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo completa 20 anos
Evento comemorativo, no dia 21, traz discussões sobre o enfrentamento ao racismo no século XXI
"Entidades negras, populares e governantes reúnem-se, pela primeira vez, num evento que marcará um novo estágio no relacionamento entre discriminados e aplicadores da Lei”. Era o que anunciava o cartaz do 'Seminário de Direito e Relações Raciais no Terceiro Milênio', realizado de 20 a 22 de março de 1997, no auditório da sede do Ministério Público estadual em Nazaré, em parceria com o Movimento Negro Unificado. O evento se tornou um marco na história da luta por igualdade racial na Bahia e no Brasil: até então nunca havia sido realizado um seminário oficial para discutir o tema. Na ocasião, foi anunciada a criação da primeira Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo no país, oficialmente instituída no dia 27 de abril daquele ano.
Na próxima terça-feira, 21, Dia Internacional contra a Discriminação Racial, vão ser comemorados os 20 anos de existência da Promotoria, cuja atuação, desde 2006, foi mais fortalecida institucionalmente, com sua integração ao Grupo de Atuação Especial de Combate à Discriminação (Gedis), que, em 2014, foi ampliado para Grupo de Atuação Especial de Proteção aos Direitos Humanos e de Combate à Discriminação (Gedhdis). A comemoração ocorre com a realização do seminário 'Enfrentamento ao Racismo no Brasil do século XXI', na sede do MP, em Nazaré, das 8h30 às 18h. Na oportunidade, será lançada a cartilha 'Racismo: Começa com ofensa, termina com Justiça' (ver programação abaixo).
Muitos dos atores que estiveram naquele seminário histórico comparecerão ao evento deste ano. Primeiro promotor de Justiça a assumir a Promotoria, o atual desembargador Lidivaldo Britto lembra as conquistas do órgão. “Pioneira e única no Brasil, ao longo desses vinte anos, ela não só apurou e denunciou, ao Poder Judiciário, os casos de racismo e de perseguição contra as religiões de matriz africana, mas, também, pugnou pela implantação das políticas afirmativas em prol dos afrodescendentes nas universidades e no serviço público, além de ter ajuizado ações coletivas em defesa de comunidades vulneráveis, a exemplo da que manteve os moradores do Pelourinho, ameaçados de expulsão, na área da sétima etapa da recuperação do Centro Histórico de Salvador”, afirmou. O desembargador também citou outras vitórias emblemáticas como “a transferência, para um lugar apropriado, das peças sagradas do Candomblé e da Umbanda, recolhidas por intermédio das apreensões policiais, nas primeiras décadas do século passado, que se encontravam no Museu do Departamento de Polícia Técnica, ao lado de armas e objetos de crimes, bem como o desmonte da estrutura racista dos blocos de trio do Carnaval, que funcionou até o ano de 2000”.
Para a advogada Maria Alice, a criação da Promotoria “inaugurou uma nova forma de enfrentamento à impunidade”. Ela foi uma das idealizadoras do seminário, junto com Lidivaldo Britto e a procuradora de Justiça Márcia Virgens, à época promotora de Justiça. “Relembro as imensas dificuldades enfrentadas naquela época. Falar de racismo no mundo jurídico era assunto delicado, de pouca importância, pois inexistiam legislações específicas capazes de enfrentar a falta de punição. Reverencio essa entidade pelos 20 anos de guardiã da lei e defensora da sociedade, desempenhando relevante e decisivo papel na luta contra a discriminação racial e a intolerância religiosa no estado da Bahia”, disse.
Para a procuradora de Justiça Márcia Virgens, o seminário realizado em 1997 “inaugura, no fim do século XX, essa etapa do Ministério Público mais social, mais protagonista, participando com a sociedade civil”. Segundo ela, foi uma atitude muito corajosa do MP, em um momento político que “o mito da democracia racial, finalmente, começou a ser desmascarado de forma oficial. Naquela época vigia no país um modelo econômico neoliberal, que reunia um binômio de exclusão social grave associado à violência étnico-racial e que se abatia sobre a população negra, sendo perverso mais ainda em relação à comunidade afrodescendente”.
Atual coordenadora do Gedhdis, a promotora de Justiça Lívia Sant'Anna Vaz considera que, apesar dos avanços, a “atual conjuntura mostra que não basta o combate à discriminação racial”. Ela destaca que, junto à legislação voltada à punição do racismo e de atos de discriminação racial, são necessárias medidas de promoção da igualdade racial. “A Promotoria de Combate ao Racismo, por meio do Gedhdis, tem atuado também neste sentido, especialmente na fiscalização das cotas raciais nos concursos públicos. Temos percebido que, quando há, pela primeira vez na história deste País, um benefício juridicamente reconhecido em ser negro, existem pessoas que se utilizam da possibilidade de autodeclaração para gozar deste benefício sem serem negras. Esta fiscalização é importante, a Administração Pública tem este dever, e o MP está atento aos casos em que ela não fiscaliza. Porque o que acontece nestes casos é o desvio da finalidade das cotas raciais, que é alcançar uma sociedade sem hierarquização racial, em que haja representatividade das pessoas negras em todos os espaços de poder”, afirmou. Os números do Grupo apontam para a intensificação do trabalho do MP. Nos últimos três anos, de 2014 para 2016, a quantidade de procedimentos abertos para apurar discriminação racial aumentou em quase três vezes, saindo de 40 para 118; e de intolerância religiosa cresceu quase seis, de 11 para 65.
Na programação está prevista a realização de homenagens a pessoas que vêm enfrentando o racismo e lutando pela promoção da igualdade racial e mesas de debates. Em uma delas será contada a história dos 20 anos, da qual participarão o desembargador Lidivaldo Britto, ex-procurador-geral e ex-promotor de Justiça; a procuradora de Justiça Márcia Virgens; e a coordenadora do Gedhdis, promotora de Justiça Lívia Santa'Anna Vaz. Em outra mesa, será abordado o tema racismo, academia e Justiça, com a participação do advogado e professor da Ufba Samuel Vida, que falará sobre racismo no ordenamento jurídico; a ouvidora da Defensoria Pública, Vilma Reis, que tratará de gênero, raça e os desafios no acesso à Justiça; e a advogada Gabriela Ramos, vice-presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da OAB-BA, que falará sobre racismo no meio acadêmico. A última mesa abordará o racismo, as letras e as artes, com a presença do compositor e maestro Letieres Leite, falando sobre racismo e a música; da atriz e cantora Nara Couto, sobre a representatividade da mulher negra no cenário musical em Salvador; e de Marcos Guellwaar, sobre as dificuldades de autores e intelectuais negros serem editados e publicados (“racismo editorial”).